quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Diálogo na Bolívia começa hoje sob tensão

Por Flávia Marreiro
na Folha de São Paulo

O presidente da Bolívia, Evo Morales, e governadores oposicionistas terão hoje no departamento de Cochabamba (centro) o primeiro encontro desde que acordaram uma agenda de negociação, na terça-feira. Mas o ambiente político ontem era ainda de troca de farpas entre os dois blocos e de desconfiança e ameaças por parte dos grupos civis aliados.Contrariando o texto do documento-base do diálogo negociado entre o vice-presidente, Álvaro García Linera, e o governador de Tarija, Mario Cossío, representante da oposição, os grupos de choque do governo do departamento oposicionista de Santa Cruz não aceitaram deixar todos os prédios públicos federais que ocupam desde a semana passada.O Comitê Cívico de Santa Cruz, que reúne a elite política e empresarial da região, ameaça não devolver a sede regional do INRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária). O governo cruzenho diz que a liberação será "paulatina".Tampouco os movimentos camponeses que apóiam o governo desistiram das medidas de pressão contra Santa Cruz. Há pelo menos seis pontos de bloqueios nas estradas que levam à capital do departamento, que na sexta-feira abre a feira de negócios mais importante do país. Os apoiadores de Morales dizem que só levantarão as interrupções quando os cruzenhos devolverem as instalações nacionais a La Paz.A anunciada marcha de camponeses -estimados em 20 mil pessoas- à capital do departamento foi objeto de reportagens de TVs opositoras e jovens do bairro periférico cruzenho Plan 3000 anunciaram a criação de um "esquadrão" para se contrapor aos da radical União Juvenil Cruzenha (UJC).Ontem, a UJC anunciou a morte de seu integrante Edson Ruiz, 26, ferido no domingo num enfrentamento a 50 km de Santa Cruz. Ruiz soma-se aos pelo menos 15 mortos no massacre no departamento opositor de Pando, sob estado de sítio desde sexta-feira.
Retórica inflamada
Outro ponto de tensão ontem foi justamente o debate em torno da legalidade da prisão do governador pandino, Leopoldo Fernández, acusado de desrespeitar o estado de sítio (leia texto à pág. A13).Morales também não abandonou a retórica inflamada. Pela manhã, participou da assinatura de um pacto com a COB (Central Operária Boliviana) e a Conalcam (conglomerado de movimentos sociais), que comprometeram-se a defender a integridade do país ante a "ameaça de golpe" dos governadores rebeldes.O presidente boliviano questionou pontos do documento-base do diálogo. A reunião de hoje, de acordo com o texto, deveria decidir o cronograma e a metodologia da negociação, dividida em três mesas temáticas: renda do gás, autonomias e nova Constituição (ainda pendente de referendos) e "pacto institucional", para a nomeação das autoridades que faltam nos tribunais superiores e na Corte Nacional Eleitoral.Morales propôs que a negociação seja intensiva e que os grupos só se desmobilizem quando os acordos forem concluídos. A alteração preocupa porque são previstos longos embates em relação à nova Carta, que trata de temas como reforma agrária, reeleição presidencial (uma única vez) e autonomia indígena.A governadora de Chuquisaca, Sabina Cuellar, opositora, exige a inclusão de um ponto também controverso: a discussão sobre o status de capital plena do país para Sucre, sede do departamento. Cuellar acusou os aliados de "traição" por não incluir o tema.
Mediadores
Morales também criticou a escolha da Igreja Católica como um dos "facilitadores" da negociação. Criticou o cardeal Julio Terrazas porque ele estava ao lado de Cossío anteontem, durante o anúncio da assinatura do pré-acordo. Acusou Terrazas de servir "mais aos imperialismo que ao povo", e anunciou que as igrejas protestantes também seriam facilitadoras.O documento também prevê a participação de facilitadores internacionais, entre eles os enviados pela Unasul (União de Nações Sul-Americanas). O representante do Brasil será o embaixador em La Paz, Frederico Araújo. Na segunda-feira, o bloco regional foi aceito por Morales com mediador na crise. Não fechou-se, porém, o número de facilitadores que a Unasul terá. Um temor no meio diplomático brasileiro é que a designação de um facilitador pela Venezuela contamine o trabalho dos enviados.

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