domingo, 6 de janeiro de 2008

Após série de fiascos, Chávez faz menção de adotar discurso 'light'

Por Ruth Costas
no Estado de São Paulo

Tradicionalmente, a virada do ano costuma ser uma época de balanços, reflexões e revisões estratégicas, mas partindo de Hugo Chávez a mudança surpreendeu. Conhecido por seu caráter combativo - que o faz vociferar contra os “inimigos” por horas e gabar-se de nunca voltar atrás -, o presidente venezuelano entrou em 2008 com um discurso relativamente conciliador, no que, segundo analistas, parece ser um recuo tático após um longo período em que ele se sentiu onipotente. “Queremos o caminho da paz. Que haja um forte debate ideológico e político, mas em paz”, disse Chávez, apenas um mês depois de ameaçar “varrer a oposição”, caso ela se mobilizasse contra seu governo. As declarações foram feitas num evento no qual o presidente anunciou uma anistia para os envolvidos na tentativa frustrada de golpe contra seu governo em 2002 e funcionários da PDVSA que, na época, participaram de uma greve para desestabilizá-lo. “Precisamos virar essa página”, disse. No mesmo dia, Chávez também anunciou mudanças em sua “revolução bolivariana”. “Há falhas latentes no processo revolucionário e elas estão à vista”, admitiu ele numa entrevista em que preferiu não usar o termo “socialismo do século 21” - uma constante em seus discursos do início de 2007. “Toda a revisão leva à correção de idéias, planos, programas e dos trabalhos do governo. Vou pôr em prática os três ‘Rs’ - revisão, retificação e reimpulso.” Para arrematar, ele reconheceu que a TVES, televisão estatal criada para substituir a opositora RCTV, que teve de sair do ar por causa de uma polêmica decisão do governo, é um fracasso de audiência. “Quase ninguém assiste a esse canal. Para mim dói muito dizer isso, mas é verdade”, lamentou. Dada a imprevisibilidade do presidente venezuelano, não há como saber se a mudança é pra valer, ou se, como aposta a maior parte dos analistas, é apenas uma trégua temporária como a que se seguiu ao golpe de 2002, quando ele prometeu diálogo. De fato, na quinta-feira, ao anunciar mudanças em seu gabinete, ele já criticava os grupos estudantis que pediam a ampliação da anistia para que os políticos foragidos da Justiça também fossem indultados.
ERROS ESTRATÉGICOS
Por outro lado, há poucas dúvidas sobre as razões desse recuo. “O presidente deu um passo atrás porque uma série de erros estratégicos pôs seu governo contra a parede”, diz Francine Jácome, diretora do Instituto Venezuelano de Estudos Sociais e Políticos, em Caracas. “Após oito anos no poder, esse foi sem dúvida o ano das decepções para Chávez tanto interna quanto externamente.” Após vencer as eleições de dezembro de 2006 com 61% dos votos, o líder venezuelano entrou em 2007 prometendo usar os recursos do petróleo para implementar no país uma experiência socialista radical. No plano externo, a idéia era fazer essa revolução espalhar-se como uma epidemia “roja, rojita” pelos países da região. Doze meses depois, nenhum dos dois objetivos está perto de se concretizar. Os analistas apontam ao menos três importantes derrotas do presidente no último ano. A primeira refere-se ao desgaste de sua imagem internacional. “O fiasco da operação para resgatar os reféns que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) prometiam entregar a Chávez encerrou um ano em que a simpatia dos europeus pelo presidente venezuelano minguou e a sua influência em países latino-americanos motivou grandes polêmicas”, opina Manuel Caballero, considerado um dos principais historiadores da Venezuela. “Chávez fez um papelão diante de representantes dos países chamados para avalizar a entrega dos seqüestrados.”Na Argentina, o grande escândalo do ano foi a apreensão de uma maleta com US$ 800 mil não declarados de um empresário venezuelano que viajava com funcionários da PDVSA, a estatal petrolífera que enche os cofres de Chávez. Na Bolívia, o governo voltou a ampliar seus negócios com a Petrobrás, após um ano em que a parceria com a PDVSA mostrou-se ineficiente. Lá, a rejeição de alguns setores da população à influência de Chávez é tanta que a embaixada venezuelana tem sido alvo de diversos ataques. Chávez brigou com o presidente colombiano, Álvaro Uribe, bateu de frente contra o Congresso brasileiro e ouviu do rei espanhol, Juan Carlos, um sonoro e inesperado “cala a boca” na última Cúpula Ibero-Americana. “Obviamente, o interesse de todos esses países em fazer negócios com a Venezuela persiste por causa do petróleo e da quantidade de dinheiro que circula por aqui”, diz Carlos Romero, autor do livro Brincando com o Globo, sobre a política externa de Chávez. Isso explicaria, por exemplo, o apoio à entrada do país no Mercosul. Mas, segundo Romero, tal interesse nem de longe significa compromisso com os princípios da revolução chavista, como o presidente venezuelano esperava. “A América Latina vive um momento muito fluido em termos econômicos e políticos para envolver-se em experiências radicais e os países mais propensos a seguir o caminho de Chávez, como a Bolívia, enfrentam obstáculos imensos para isso”, afirma.
TRIUNFO DO ‘NÃO’
O segundo grande revés para Chávez - e talvez o mais significativo dos três - foi a vitória do “não” no referendo sobre a reforma constitucional proposta pelo presidente. Após ganhar nove processos eleitorais consecutivos, Chávez estava confiante de que incluiria mais esse na lista. Ao final, porém, não conseguiu levar às urnas nem seus aliados mais próximos. Votaram em favor da reforma 4,3 milhões de eleitores, 1 milhão a menos que o número de inscritos no Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), criado pelo presidente para reunir todos os ramos do chavismo. “Com a máquina eleitoral usada nesse processo é surpreendente que a proposta tenha sido rejeitada até por chavistas”, diz Romero. Entre os pontos mais polêmicos estavam a reeleição presidencial ilimitada e a criação de outros tipos de propriedade além da privada, como a coletiva e a social. “O projeto foi rejeitado porque, na percepção da população, concentrava muito o poder nas mãos do presidente e contrariava princípios importantes da democracia, como a pluralidade de opiniões políticas”, diz o cientista político Oscar Reyes, professor da Universidade Católica Andrés Bello. “Além disso, as pesquisas demonstram que a população venezuelana não quer saber dessa história de socialismo porque todos têm muito medo que o país acabe como Cuba. A aceitação seria maior se a proposta fosse uma social-democracia.” O referendo também refletiu o descontentamento da população em relação a uma série de problemas econômicos e sociais que ganharam impulso nos últimos anos e pelos quais pouco a pouco o presidente começa a ser responsabilizado. Apesar de todos os recursos que entram na Venezuela com a venda do petróleo, a violência é endêmica, não há uma política habitacional sólida e as prateleiras dos supermercados estão vazias por problemas no abastecimento de produtos básicos como carne, leite e açúcar. A inflação, que em 2007 bateu em 22,5% - o maior índice da região -, também é implacável sobre o poder de compra dos mais pobres. “Os venezuelanos simplesmente não conseguem entender por que não conseguem comprar um litro de leite se o nosso país está ganhando tanto dinheiro”, diz Reyes. “Todos estão começando a relacionar essa dificuldade à falta de estímulos para o setor privado investir na produção e até quem simpatiza com o presidente já percebeu que, se algo está errado, é por culpa do governo.” As mudanças no gabinete de Chávez são, em parte, uma tentativa desesperada de mostrar que algo está sendo feito para solucionar esses problemas. Ao longo da semana, o governo anunciou alterações nos rumos das políticas econômica e antiinflacionária.
RCTV
Outra derrota do presidente venezuelano no último ano, segundo os analistas, foram os custos causados pelo fim das transmissões da opositora RCTV, a emissora mais popular da Venezuela, com 40% de audiência. Após cinco décadas no ar, ela teve seu sinal cortado em maio porque Chávez se recusou a renovar sua licença. A medida foi vista como uma decisão pessoal do presidente, que acusava os diretores do canal de participarem do golpe de 2002. Na cabeça dos venezuelanos, por um capricho do presidente eles ficaram sem a novela, o programa de auditório favorito e o humorístico do domingo. Pegou muito mal. Para piorar, a RCTV foi substituída por uma emissora estatal com uma programação “educativa” que não consegue 3% na audiência - a TVES. Nas ruas, essa foi a primeira vez que se ouviram aliados de Chávez criticarem abertamente uma medida do presidente. “A decisão afetou os venezuelanos mais pobres, que não têm TV a cabo”, diz Francine.Também foi o caso da RCTV que começou a mudar a cara da oposição venezuelana - outra transformação importante que se consolidou em 2007. Saíram de cena os empresários e elites políticas tradicionais - muitas vezes, vinculados à tentativa de golpe de 2002 - e entraram estudantes, intelectuais, artistas e uma nova classe política, mais jovem e com um discurso mais palatável em defesa dos princípios democráticos e melhoras sociais. O movimento estudantil, adormecido por duas décadas no país, tomou as ruas das grandes cidades venezuelanas e até partidos da coalizão chavista, como o Podemos, começaram a dizer que o presidente já estava indo longe demais.Ainda assim, a falta de líderes fortes, capazes de vencer eleições, continua a ser um dos obstáculos para que a oposição possa forjar uma alternativa viável a Chávez. “O presidente ainda é muito popular por seus programas sociais e discurso em favor dos mais pobres - isso não há como negar”, diz Caballero. Ele explica que Chávez tem muitos recursos e uma série de mecanismos para levar a cabo suas reformas de outras maneiras, agora que o referendo se mostrou uma opção inviável. “O que 2007 mostrou ao presidente é que isso lhe dará muito mais trabalho do que ele imaginava. A popularidade não lhe concede um cheque em branco para promover todas as reformas que ele quiser, onde e como quiser.”

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