domingo, 26 de outubro de 2008

O guardião da economia brasileira

Por Lúcia Ratizel
no Zero Hora

Em meio ao tempo fechado da economia global, o goiano Henrique Meirelles, presidente do Banco Central (BC), foi quem forneceu ao Brasil o guarda-chuva para enfrentar a crise financeira. Em grande medida, é mérito dele que, mesmo tendo experimentado na semana que passou os dias mais críticos desde o agravamento da turbulência internacional, o país se mantenha no grupo dos países melhor equipados para enfrentar a ressaca do subprime norte-americano.Dono de uma desenvoltura inédita entre seus sucessores para circular na elite financeira mundial, Meirelles, 63 anos, é apontado como o guardião da economia brasileira. Desde que assumiu o BC, no primeiro mandato de Lula, vem comandando uma política austera e por vezes impopular para manter o apertado cerco contra a inflação. Foi diversas vezes alvo do fogo-amigo de petistas mas, com a queda do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, é considerado o homem-forte do governo e a autoridade mais respeitada pelo mercado.Amigo há mais de 30 anos do presidente do BC, o banqueiro gaúcho Ricardo Malcon diz que a trajetória de Meirelles, da academia para as finanças privadas e finalmente para Brasília, treinou seu olhar para enxergar os dois lados do balcão. Graduado em engenharia civil pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em engenharia de produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro, ali também fez mestrado em administração de empresas, com uma tese sobre leasing. A carreira internacional começou em 1975, como diretor-superintendente da Boston Leasing. Até então o primeiro estrangeiro a chefiar um banco norte-americano, ficou na presidência mundial do FleetBoston Financial de 1999 a 2002 – ano em que, já aposentado e de volta ao Brasil, foi eleito deputado federal pelo PSDB de Goiás.– Ele lê e estuda muito. É extremamente profissional, muito qualificado e, principalmente, um profundo conhecedor da economia mundial. Outros ex-presidentes do BC conheciam a realidade brasileira, mas o Meirelles sabe muito da economia dos Estados Unidos, da Argentina, do Uruguai, do Brasil, enfim, do mundo. Além disso, tem a prática de como é conceder crédito, como é avaliar riscos – elogia Malcon.Durante o mandato de Malcon na presidência da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), o presidente do BC foi a estrela dos encontros anuais promovidos pela entidade. Por duas vezes, jantou na casa do banqueiro, em Porto Alegre, em mesas que reuniam empresários responsáveis por 70% do Produto Interno Bruto estadual. Nessas ocasiões, impressionou os convidados pelo conhecimento, bom gosto e pelos ternos discretos e elegantes. No caso de ser necessário dar um presente a Meirelles, não erra quem escolher uma gravata da grife italiana Bulgari, conta Malcon. O presidente do BC teria uma coleção delas.Para o amigo, é provável que o brasileiro há muito tempo já considerasse a possibilidade de um colapso financeiro global e, por isso, preparou o Brasil para enfrentar o tranco. Entre as medidas, encheu os cofres de reserva do país com dólares, garantindo a munição do BC contra a nova disparada do dólar. Na crise da Ásia, em 1997, Gustavo Franco, presidente do BC na época, dispunha de US$ 52 bilhões. Já Meirelles acumulou US$ 200 bilhões e pode jogar pesado no câmbio: anunciou que usará até US$ 50 bilhões para domar as cotações.– Não faria uma vinculação pessoal (a Meirelles), mas acho que o BC está mais atento ao que ocorre lá fora – afirma Edgar Pereira, professor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Economia do Instituto de Economia da Unicamp.Por causa da crise, Meirelles está praticamente todos os dias nos jornais, rádios, televisão e internet. Tem sido um teste para sua capacidade de pinçar palavras que resultem inócuas para quem tenta extrair delas sinais de qual será o passo seguinte da autoridade monetária. Em geral, evita entrevistas coletivas fora de Brasília e, ao contrário da maioria dos políticos, não fala com jornalistas na porta da sede do BC. Nas semanas que antecedem a definição da Selic, juro básico fixado mensalmente pelo Comitê de Política Monetária (Copom), chega a ser irritante como recita que não é sua atribuição influenciar a decisão do comitê – embora tenha o voto de minerva em caso de empate.A próxima reunião do Copom ocorre nesta semana e a dúvida entre os profissionais do mercado é se o BC brasileiro manterá a postura de dar prioridade ao combate à inflação, que reforça a possibilidade de alta da Selic, hoje em 13,75% ao ano, ou se, a exemplo do que ocorreu na Europa, cederá à ameaça de desaquecimento podando a taxa. O diretor financeiro do Banrisul, Ricardo Hingel, acredita numa alta de 0,5 ponto percentual, mas admite que sua convicção já foi maior. Hoje, diz, as chances de alta são de 50%, menos dos 80% de antes de a economia real acusar o impacto do enxugamento do crédito. Para o presidente da Associação dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), Miguel de Oliveira, não haverá alteração.Funcionários do banco que trabalham próximos a Meirelles atribuem a economia de palavras à consciência sobre o impacto de suas declarações no mercado. Por isso, é apegado aos detalhes e obcecado pela correção técnica. No dia-a-dia, é um chefe calado, sério, mas não arrogante. Em Brasília, onde está de terça a quinta-feira, chega à sede do BC por volta das 9h30min. Não é raro que seus subordinados recebam mensagens suas às 6h, nos BlackBerries que ele instituiu a todos os membros da diretoria e assessores mais próximos. A explicação: pode estar online sem ter de interromper as constantes palestras que profere em todo o país.Numa das mais recentes, relacionou entre as origens da crise o longo período de baixas taxas nos EUA, o aumento da produtividade e do baixo custo da mão-de-obra na China, que teriam criado condições para a política monetária expansionista do Federal Reserve, o banco central norte-americano. Com isso, concluiu, houve aumento substancial do crédito e a inflação do preço dos ativos, em especial, dos imóveis.Dois dias da semana, a segunda e a sexta, Meirelles despacha em São Paulo. Quando passa o final de semana em Goiânia ou no Rio, ele e a mulher, a psiquiatra Eva Missini, viajam em avião de carreira. No BC, seus interlocutores mais freqüentes são o diretor de Política Econômica, Mario Mesquita, que assumiu o posto em março do ano passado no lugar de Afonso Bevilaqua, Alexandre Tombini, da área de Normas e Organização do Sistema Financeiro, apontado pelo mercado como o provável sucessor de Meirelles na presidência do BC, e Mario Torós, diretor de Política Monetária.Até a semana passada, o BC colhia só elogios por ter persistido no caminho da eterna vigilância da estabilidade, de ter amarrado o sistema financeiro nacional a regras conservadoras que, agora, confirmaram as virtudes da prudência e por estar atento ao volátil cenário externo. Mas a Medida Provisória 443, que amplia as possibilidades de participação de bancos públicos em instituições financeiras e empresas privadas, dividiu opiniões. Resumidamente, as críticas são de que teria plantado desnecessariamente a semente da desconfiança quanto à solidez dos bancos nacionais e aguçado o apetite estatizante do governo que, afinal, é do PT.Na sexta-feira, Meirelles estava em Miami, onde fez palestra no Latin Trade Bravo Business Award e recebeu o prêmio de Financista do Ano, concedido pela revista Latin Trade. Entretanto, passou muitas horas do dia ao telefone, conversando com diretores do BC, integrantes do governo, executivos e empresários. O guardião não pode abandonar o posto no pior da tempestade.

Nenhum comentário: