sábado, 17 de maio de 2008

"Um mapa que não tem sossego" por Roberto Pompeu de Toledo

Nas eleições do mês passado na Itália, a Liga Norte, que defende a separação entre o norte e o sul do país, dobrou sua votação, com relação à eleição anterior, e conquistou um papel de peso na coligação chefiada pelo primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Na Bélgica, teme-se que o gabinete enfim formado em março, depois de oito meses de desentendimento entre os flamengos do norte e os valões do sul, seja um dos últimos a segurar o país unido. Na Espanha, fervem os nacionalismos basco e catalão. No País Basco, está marcado para outubro um plebiscito sobre sua independência. Na Escócia, programou-se para 2010 um plebiscito sobre a ruptura dos laços com o Reino Unido. As pessoas que compraram mapas novos da Europa nos últimos anos, para se pôr em dia com as mudanças no leste do continente, que se preparem: logo podem ter de comprar outro, para se atualizar com as mudanças no lado oeste.
Se há algo que soa incongruente ou, mais que isso, estapafúrdio, no mundo de hoje, é o separatismo europeu. O continente vive seu momento máximo, na história, de paz e progresso. As populações desfrutam um bem-estar que os avós, contemporâneos da II Guerra Mundial, nem em sonhos conceberiam. Protagonizam uma experiência política, batizada primeiro de Comunidade Econômica Européia, depois de Comunidade Européia e, hoje, de União Européia, que é a mais criativa fórmula já posta em prática no planeta para agregar economias, aproximar sociedades e contornar históricas hostilidades. Contra esse quadro floresce o paradoxal e oposto fenômeno do levante das paróquias. "Não temos nada em comum a não ser o rei, o chocolate e a cerveja", diz Filip Dewinter, líder separatista flamengo. A Bélgica configura o caso mais extremo. A Espanha de alguma forma continuará a existir, mesmo que se despreguem dela o País Basco e a Catalunha. A Itália idem, ainda que seja criada a república com nome de ópera-bufa – Padânia – preconizada pela Liga Norte. Já a Bélgica terá necessariamente de sumir do mapa para dar lugar à Flandres dos que falam a variante do holandês chamada flamengo e à Valônia dos que falam francês.
Os separatismos desafiam a noção de que nesses lugares a história já chegara ao fim. Não havia nada que parecesse mais pronto e acabado, no mapa, do que a Grã-Bretanha. Houve lá atrás brigas como a que opôs a primeira Elizabeth da Inglaterra a sua prima Maria Stuart, rainha da Escócia, conforme bem nos ensinaram mais de uma fita de cinema, mas tudo isso fazia muito parecia superado, e indissolúvel o casamento que assegurava a unidade da maior das ilhas britânicas. Eis no entanto que o nacionalismo escocês se revigora, arrebanha garotos-propaganda como o ator Sean Connery, e torna-se uma dor de cabeça crônica para o governo de Londres. A unificação da Itália, no século XIX, também tinha toda a aparência de um final (feliz) de história. Não mais. Na verdade, engano é pensar que exista um fim para a história. Já deveríamos estar escolados pela queda do Muro de Berlim, que determinou o colapso de outro mundo que parecia não apenas sólido, mas o retrato do futuro. Não aprendemos. A tendência a achar que as coisas já se cristalizaram tem o atrativo de inspirar segurança e mascarar com uma aparência de previsibilidade o mundo em que vivemos.
As causas dos separatismos na Europa são tão diversas quanto são eles próprios, mas podem-se identificar alguns padrões. A defesa da própria língua, e a intolerância para com a do outro, é o padrão que aproxima os separatismos da Espanha e da Bélgica. O New York Times publicou recentemente a notícia de que a pequena cidade belga de Liedekerke, assustada com o crescente número de habitantes francófonos, determinou a exclusão das crianças que não falam flamengo das atividades esportivas e de lazer das escolas. No País Basco, o serviço público exige crescentemente dos servidores o conhecimento do euskera, o idioma local, que dois terços dos próprios bascos não dominam. Outro padrão é a origem do separatismo nas regiões mais ricas, contra as mais pobres. É o caso da Catalunha, da Flandres e do norte da Itália. As três se irmanam na alegação de que são obrigadas a sustentar, com os impostos que pagam ao poder central, as populações incompetentes e/ou indolentes de outras regiões.
A primeira moral dessas histórias é que os europeus não têm razão para estranhar as disputas africanas entre tutsis e hutus em Ruanda, quicuios e luos no Quênia, árabes e nubas no Sudão. Suas próprias tribos não são menos incompatíveis umas com as outras. A segunda é que dos povos e dos países não cabe esperar que tenham encontrado o ponto final de suas histórias porque são como os indivíduos. Por mais contemplados pela riqueza e pelo bem-estar, sempre haverá algo que os balance. Se não há inimigos externos, inventarão inimigos dentro de si mesmos. A inquietude vigia sem descanso para impedir a vitória do conforto que vem da riqueza e da harmonia que vem do bem-estar. Assim como não há homem pronto nem mulher pronta, também não há país pronto nem povo pronto.

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