domingo, 14 de outubro de 2007

O Cristo dos intelectuais, por José Maria e Silva

do Jornal Opção desta semana

”Neste outubro, quando faz 40 anos da morte de Ernesto Che Guevara, a revista Veja publica um artigo rancoroso que tenta denegrir a imagem de um dos homens mais admirados pela juventude.” Esta afirmação é do monge Marcelo Barros, em artigo publicado no jornal O Popular, na quarta-feira, 10, em que faz uma verdadeira hagiologia do guerrilheiro cubano. “A maioria dos estudiosos e pesquisadores, como os diversos biógrafos do Che, confirma a motivação ética que o movia e a generosidade com a qual quis conquistar para todos os seres humanos um mundo mais igualitário. Um mínimo de honestidade histórica e de lucidez política exige que não julguemos ações da década de 60 como se a conjuntura internacional e latino-americana fossem as mesmas de hoje”, sustenta Marcelo Barros. O monge beneditino da Cidade de Goiás, autor de 30 livros, cita a encíclica Populorum Progressio para justificar sua defesa de Che Guevara: “Uma encíclica do papa Paulo VI, em 1967, retomava a antiga convicção teológica cristã de que ‘em casos de tirania prolongada e evidente que ofenda gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudique o bem comum do país, as pessoas têm o direito moral da insurreição revolucionária para derrubá-la’. Foi o que, na década de 60, muitos jovens fizeram”. Corretamente intitulada “Che Guevara: há 40 anos morria o homem e nascia a farsa”, a reportagem de Veja não é rancorosa, mas o artigo do monge é equivocado. Parafraseando suas próprias palavras, um mínimo de honestidade histórica e de lucidez teológica teria impedido Marcelo Barros de transformar em oração principal um aposto da encíclica e ainda acrescentar, por conta própria, uma frase que não existe no texto do Papa Paulo VI. A Populorum Progressio, no parágrafo 30, intitulado “Tentação da Violência”, afirma: “Certamente há situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação cultural e de acesso à carreira social e política, é grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana”. Mas, logo a seguir, no parágrafo 31, intitulado “Revolução”, ressalva: “Não obstante, sabe- se que a insurreição revolucionária — salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país — gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior”. Onde está o mandamento inventado pelo monge Marcelo Barros para enaltecer Che Guevara: “...as pessoas têm o direito moral da insurreição revolucionária para derrubá- la” [a tirania]? No caso de Cuba, Fulgêncio Batista foi um “mal real”, mas Fidel Castro é uma “desgraça maior”. Primeira encíclica publicada após o Concílio Vaticano II, em 26 de março de 1967, a Populorum Progressio foi muito influenciada pelas idéias socialistas, tanto que faz uma dura crítica à desigualdade social: “Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida a cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão”. Mas a encíclica do Papa Paulo VI não incita os fiéis à revolução comunista, como tenta fazer crer o monge; pelo contrário, ele combate o materialismo e reforça os valores cristãos. Ao analisar os conflitos sociais da época, a Populorum Progressio faz uma crítica quase direta ao socialismo: “Nesta confusão, torna-se mais violenta a tentação, que talvez leve a messianismos fascinantes, mas construtores de ilusões. Quem não vê os perigos, que daí resultam, de reações populares violentas, de agitações revolucionárias, e de um resvalar para ideologias totalitárias? Tais são os dados do problema, cuja gravidade a ninguém passa despercebida”. Para Marcelo Barros, a gravidade do problema das revoluções deve ter passado despercebida. Em seu artigo, ele deforma a história, afirmando que Che Guevara procurava ser justo no julgamento dos prisioneiros da Revolução Cubana, o que contraria os melhores biógrafos do guerrilheiro, inclusive John Lee Anderson, um biógrafo sem exageros do guerrilheiro comunista, capaz de reconhecer suas qualidades. Guevara era cruel, tinha prazer em matar, mas não se igualava a alguns falangistas da Guerra Civil Espanhola, como o general Gonzalo Queipo de Llano, que, segundo o historiador inglês Antony Beevor, tratava as mulheres dos combatentes republicanos como espólios de guerra — a mando do próprio general, elas eram coletivamente estupradas pelos selvagens batalhões marroquinos, usados como mercenários da direita espanhola para impedir a revolução comunista. Em contrapartida, no início da Guerra Civil Espanhola, a esquerda republicana também abriu as cadeias e libertou criminosos comuns para incorporá- los a suas tropas, e eles também cometeram atrocidades contra a população civil, incluindo estupros de mulheres. Como o próprio Marcelo Barros sabe, a luta pelo poder — à direita ou à esquerda — é quase sempre violenta e seus protagonistas, ainda que possam ser compreendidos como guerreiros, não podem ser sacralizados como santos. Mas, justiça seja feita, o monge Marcelo Barros não é o único que idolatra Che Guevara. O culto ao revolucionário argentino é a norma entre os intelectuais. Em 6 de outubro, o filósofo e cientista político Emir Sader, professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, escreveu: “Há personagens com uma tal estatura histórica que, independente dos adjetivos e de todos os advérbios, ainda assim não conseguimos retratá-los em nada que possamos dizer ou escrever. O que falar de Marx, que permaneça à sua altura? O que escrever sobre Fidel?” E, depois de afirmar que Che Guevara é um desses personagens “cósmicos”, Emir Sader conclui: “Não vou gastar palavras inúteis para falar do Che. Basta reproduzir algumas das suas frases, que selecionei para o livro Sem Perder a Ternura”. Notem o tom verdadeiramente místico dessas frases. Faria alguma diferença se Emir Sader, parafraseando a missa católica, tivesse escrito: “Che, eu não sou digno de bendizer o teu nome, mas basta reproduzir tuas palavras e serei salvo”? E o sociólogo Alberto Carlos Almeida, autor do livro A Cabeça do Brasileiro (Editora Record, 2007), ainda acredita que a educação, por si só, é capaz de salvar o país. Ora, nenhum dos analfabetos pesquisados por Almeida incorre nesse tido de idolatria praticado por Emir Sader, doutor em ciência política pela USP. A crença em Deus os protege disso. Por mais que um analfabeto da Vila Mutirão cultue Iris Rezende, o máximo que dirá dele é que se trata de “um enviado de Deus”, jamais que é o próprio Deus, como faz, na prática, o ateu e escolarizado Emir Sader com Che Guevara.
Notem que não é apenas em relação a Che Guevara que Emir Sader incorre nesses desatinos verdadeiramente místicos. Ele também fala de Marx e Fidel, como de seres mitológicos, que estão acima da capacidade de expressão da linguagem humana. “O que falar de Marx que permaneça a sua altura? O que escrever de Fidel?”, indaga, como o salmista bíblico diante do Senhor. Saber que um homem desses é professor e orientador de teses em universidades chega a ser desesperador. Como ter esperança num país que permite a tamanha anomalia mental travestir-se de doutor e sair pervertendo jovens em formação? E o que é mais grave: Emir Sader não é exceção, mas regra entre os intelectuais brasileiros. O professor Flávio Aguiar, editor da revista digital Carta Maior e professor aposentado da USP, com pós-doutorado em letras pela Universidade de Montreal no Canadá, também perpetra um panegírico em louvor a Che Guevara, que começa assim: “Che em línguas pampeanas quer dizer ‘homem’. Em guarani quer também dizer ‘meu’. El Che significa ‘o homem’, ‘o ser humano’, em linguagens que, como rios subterrâneos, nos lembram das catástrofes históricas que nos trouxeram até hoje”. Flávio Aguiar dá “cinco razões pelas quais os arautos da direita brasileira não podem suportar o mito Che”. E, depois de comparar Guevara a um anjo “voltado para a vida e não para a morte”, “em contínua operação na história”, ele arremata com a quinta e última razão, segundo ele, para a direita não gostar do guerrilheiro: “O Che era bonito. Aí é demais. Dispensa palavras”. Flávio Aguiar, com seu pós-doutorado na Universidade de Montreal, não consegue perceber que o capitalismo é quem mais gosta do mito de Che Guevara, porque lucra com ele, vendendo de camisetas a filmes — inclusive o capitalismo da corte dos irmãos Castro, que prospera na miséria socialista de Cuba. Ou o doutor da USP acredita que a devoção de Fidel por Che vai além da mera propaganda revolucionária com o objetivo de atrair turistas endinheirados para a ilha-cárcere do “paraíso socialista”? Che Guevara é apenas uma droga a mais para consumo da juventude mundial, graças a professores como Sader e Aguiar, que não passam de traficantes do espírito, contrabandeando ideologia como se fosse ciência. Para muitos professores, a docência universitária é uma pedofilia intelectual, voltada para a doutrinação descarada de crianças, adolescentes e jovens. Como era, por exemplo, para o pedagogo Paulo Freire, autor de um livro de auto-ajuda marxista que se tornou um clássico da esquerda no mundo — o famigerado Pedagogia do Oprimido, Bíblia dos aparelhos de pedagogia nas universidades do país afora. Che Guevara é Deus e Paulo Freire é seu profeta. Pedagogia do Oprimido se propõe a ser o Evangelho da Revolução Comunista no continente latino-americano. Mesmo tendo sido publicado em 1970, em pleno governo do general Emilio Garrastazu Médici, logo virou best-seller, alcançando sucessivas edições ainda sob os coturnos dos militares. Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire descreve Che Guevara como a um santo: “Foi assim, no seu diálogo com as massas camponesas, que sua práxis revolucionária tomou um sentido definitivo. Mas o que não expressou Che Guevara, talvez por sua humildade, é que foram exatamente esta humildade e a sua capacidade de amar que possibilitaram sua ‘comunhão’ com o povo. E essa comunhão, indubitavelmente dialógica, se fez co-laboração”. Para o pedagogo, até as palavras do guerrilheiro são verbo divino: “Até no seu estilo inconfundível de narrar os momentos da sua e da experiência de seus companheiros, de falar de seus encontros com os camponeses ‘leais’ e ‘humildes’, numa linguagem às vezes quase evangélica, esse homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e de comunicar- se”. Paulo Freire escreve tudo isso sabendo que Che Guevara nada tinha de São Francisco de Assis, tanto que ele mesmo observa que, no relato do guerrilheiro, havia referência à “necessidade de punição ao que desertou para manter a coesão e a disciplina do grupo”. Ora, há 37 anos, quando publicou Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire já sabia o que os professores universitários de hoje fingem ignorar — essas punições comandadas por Che significavam sentenças de morte sumárias. Mas o charlatão Paulo Freire — inaugurando a falsificação histórica que viria a seguir — abençoou as mortes perpetradas por Che: “A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida”. Hoje, os discípulos de Paulo Freire, se não forem detidos, continuarão proibindo a vida mental no país.

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