terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Golpe na Bolívia

Editorial do Estado de São Paulo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse em Buenos Aires, pela enésima vez, que Evo Morales foi “a coisa mais extraordinária” que aconteceu recentemente na América do Sul, pois ele é “a cara da Bolívia”. De fato, Evo Morales não desmerece a maioria de seus antecessores. Em menos de duas semanas aplicou dois golpes nas instituições, calando a oposição e impondo ao país uma constituição que lhe permitirá ficar no poder até 2018, centralizará a atividade econômica nas mãos do Estado e dividirá o país em áreas indígenas - lá existem 36 etnias -, com autonomia administrativa e tribunais próprios, obedecendo a uma legislação específica.O primeiro golpe foi dado no dia 24. Depois de mais de um ano sem que conseguissem votar um único artigo do projeto feito por Evo Morales, seus seguidores transferiram a sede da Assembléia Constituinte, em Sucre, para um quartel e, na calada da noite, aprovaram todo o texto - acrescido de dispositivo que permitia a reeleição indefinida do presidente -, obviamente sem a participação da oposição. O texto foi aprovado por 138 dos 255 constituintes, violando, assim, a legislação que condicionava a aprovação ao apoio de dois terços dos deputados.No sábado, a Constituinte foi transferida para uma universidade em Oruro, cidade controlada pelos partidários de Morales. Lá se reuniram 164 deputados que tiveram o cuidado formal - mas nem por isso menos golpista - de mudar as regras do jogo, para permitir que a constituição fosse aprovada por dois terços dos presentes, e não de todo o corpo parlamentar, como determinava a lei que convocou a Assembléia Constituinte. A maior parte dos deputados da oposição, que esperavam que a sessão fosse instalada em Cochabamba, não chegou a tempo em Oruro. Os poucos que compareceram decidiram não participar da pantomima, depois de deixar claro à Assembléia que o que lá se passava era ilegal.Impedidos de deixar o recinto por uma multidão que cercava o prédio - e de vez em quando explodia cargas de dinamite para estimular o ânimo reformista dos constituintes -, em 16 horas de trabalho os deputados aprovaram o texto da nova constituição, que será submetida a referendo. Neste segundo turno, deveriam ser votados todos os mais de 400 artigos da constituição, um por um. Mas todos tinham pressa, não havia oposição a exigir o respeito à lei, e votou-se tudo em bloco, por capítulos. Muitos dos deputados não dispunham de cópia do projeto, para acompanhar o que estava sendo votado. Explica-se a pressa de Evo Morales e os seus expedientes golpistas. A Assembléia tinha até o dia 15 deste mês para cumprir o objetivo de sua convocação. Passou, no entanto, mais de um ano perdida em discussões sobre procedimentos, sem que a maioria liderada pelo Movimento ao Socialismo conseguisse vencer a obstrução da minoria. E o que a minoria queria não era nada extraordinário: respeito à propriedade privada e à livre empresa e autonomia política, administrativa e fiscal aos nove departamentos (Estados), que até o ano passado tinham seus governadores nomeados em La Paz.Os governadores de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Cochabamba, que se opõem a Evo, anunciaram que não acatarão a nova constituição e já conclamam a população à desobediência civil. Os governadores de La Paz e de Chuquisaca não integram o bloco de oposição, mas não apóiam Evo Morales, que só conta com os departamentos de Oruro e Potosí. O Comitê Cívico de Santa Cruz, onde é forte e antigo um movimento separatista, pretende antecipar um referendo para a aprovação unilateral do estatuto de autonomia do departamento.Evo Morales foi eleito em 2005, por ampla maioria, com a promessa de promover a inclusão política e social das comunidades indígenas na vida nacional. Mas revelou-se um fiel discípulo do caudilho venezuelano Hugo Chávez - cuja ascendência sobre Morales é total, a ponto de fornecer-lhe guarda-costas - e adotou integralmente o “bolivarianismo”. A diferença é que, na Venezuela, a oposição a Chávez se dissolveu após a greve de 2002 e só voltou a aparecer agora, no referendo que rejeitou a constituição liberticida. Na Bolívia, a oposição sempre esteve estruturada. Com o golpe deste final de semana, Evo Morales ampliou as divisões do país e aumentou as possibilidades de que haja uma reação violenta aos seus desmandos.

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