quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

"A decisão soberana pode ser ultrajante" por Augusto Nunes

Em 1936, o governo constitucional de Getúlio Vargas presenteou o ditador Adolf Hitler com a deportação de uma alemã presa numa cadeia do Rio. Tratava-se da militante comunista Olga Benario, mulher de Luiz Carlos Prestes, então grávida de Anita. Em 1942, o assassinato da extraditada estrangeira na câmara de gás de um campo de concentração nazista confirmou que, para afagar os donos do poder na Alemanha, o governo Vargas reduziu o país a cúmplice de um crime hediondo. A entrega de Olga aos carrascos foi uma decisão ultrajante das autoridades brasileiras. Mas foi uma decisão soberana.
Ao promover a refugiado político o italiano Cesare Battisti, o Brasil tomou uma decisão soberana, recita a cada meia hora o ministro Tarso Genro. Mas foi também uma decisão ultrajante, por beneficiar um terrorista que roubou e matou para assassinar o regime democrático. Conjugadas, a saga de Olga Benario e a história do bandido condenado à prisão perpétua na Itália e libertado pelo País do Carnaval ensinam que decisões soberanas podem ser desastrosas.
Deveria ser esse o tema da aula inaugural do cursinho de direito para crianças em que precisa ser urgentemente matriculado o advogado Tarso Genro. Ele tem de aprender que "soberano" não é sinônimo de "justo". O governo do país ofendido praticaria um ato tão soberano quanto arbitrário caso revidasse a sentença que absolveu Battisti com o confisco do passaporte italiano concedido à descendente de imigrantes Marisa Letícia da Silva. A dupla cidadania da primeira-dama permitiria passar-se à segunda lição, concebida para explicar ao ministro por que o governo italiano se negou a extraditar Salvatore Cacciola.
Como Marisa Letícia, Cacciola tem duas nacionalidades. E as leis daquele país proíbem a extradição de qualquer cidadão sem contas a ajustar com a Justiça de lá. O erro do foragido foi passear em Mônaco. Capturado pela polícia do principado, acabou devolvido ao Brasil por lhe faltar a cidadania monegasca. Um cursinho simples assim pouparia o País do Carnaval das afrontosas reapresentações de fantasias em frangalhos. E livraria os homens de bem das aparições televisivas do padrinho de bandido.
Quanto maior é a confusão em que se mete, mais verborrágico se torna o estilista do idioma. Como seus colegas do mundo da moda no inverno e no verão, a cada surto de loquacidade Tarso pesca uma palavra no poço de erudição.
"Refundação" chegou na temporada 2005/2006 – refundação do PT, refundação do governo, refundação do Brasil. Em 2007/2008, foi a vez do modelito "republicano". O país tornou-se republicano, as operações da Polícia Federal viraram republicanas, a oposição não captou o espírito republicano da coisa. Neste janeiro, inspirado no caso Battisti, Tarso Genro criou a linha "soberania".
"Foi uma das situações mais difíceis da minha vida", revelou o estilista na recente entrevista ao jornalista Alexandre Garcia. E momentos assim exigem costuras singularmente inventivas, souberam os brasileiros que acompanharam o delírio transmitido pela TV Globo. A década de 70, contou Tarso, "foi um período triste da História italiana". (Para restabelecer a alegria, jovens guerrilheiros criaram o mundo maravilhoso dos atentados a bomba e assassinatos).
"Na Itália, ao contrário do Brasil, não houve a anistia", pisou no acelerador. (Se ocupasse o mesmo cargo naquele país, portanto, Tarso estaria hoje em campanha para castigar os carcereiros e guardas daquela época). O entrevistador observou que a Itália do pós-guerra foi sempre um exemplo de democracia. Tarso fingiu concordar e decolou rumo a outra tese poderosa: a ocorrência de exceções confirma a existência do estado de direito. Quer dizer: se não houvesse de vez em quando episódios que escancaram a face autoritária, como a condenação de um justiceiro revolucionário, seria difícil perceber que, de modo geral, a Itália era mesmo uma democracia.
Como assim?, espantou-se a platéia. Muito simples, caprichou o pensador de Santa Maria. Os Estados Unidos mostram há mais de 200 anos o que é um regime democrático, certo? Mas criaram a prisão de Guantánamo, capaz de deixar insone qualquer torturador, certo? Está provado que democracia às vezes abriga coisas de ditadura.
Por que Tarso não se cala ao menos no mês do Carnaval?

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